BRASIL | UM VEÍCULO DAS NOVAS IDEIAS E INICIATIVAS INTEGRADORAS | JAVIER VILLANUEVA | Marzo 2025

Por: Javier Villanueva
TRADUÇÃO:  Isaac J. Morales Fernández



 UM VEÍCULO DAS NOVAS IDEIAS E INICIATIVAS INTEGRADORAS

Nossa América do Memorial da América Latina / Entrevista a Eduardo Rascov, diretor da Revista Nuestra

O Memorial da América Latina é uma instituição sólida e icônica, assentada num conjunto arquitetônico tão vigoroso quanto representativo e emblemático como a instituição que o habita. E de todos os muitos homens e mulheres que servem o ideal de integração latino-americana que viu nascer o Memorial em 1989, um deles é particularmente representativo: Eduardo Rascov. Quem o conhece desde que ingressou na instituição sabe o que pensa e como age: para ele o Memorial da América Latina não é um museu, um teatro, nem uma galeria de arte, nem um fórum de temas acadêmicos, nem um centro de festas e shows musicais. Mas é tudo isso ao mesmo tempo e no mesmo lugar. E tem princípios e objetivos que Rascov compartilha plenamente.

O que Eduardo Rascov sabe –sobretudo– é que esta, a sua instituição, veio há 35 anos resgatar a velha e nobre ideia de solidariedade e união defendida pelos libertadores da América no século XIX, sustentando que era necessário que os latino-americanos não esqueçam o seu passado, as suas origens.

De 2000 a 2015 Rascov colaborou com a Revista Nuestra/Nossa América, órgão de divulgação do Memorial da América Latina, com pautas e artigos. Desde 2015 ele se tornou o editor.

O que propôs Eduardo Rascov nesses longos anos à frente da Revista Nuestra/Nossa América? Nada menos que resgatar as raízes herdadas do pensamento do antropólogo Darcy Ribeiro, homem de teorias progressistas e de atuação política ousada que construiu, junto com o arquiteto Oscar Niemeyer, um conceito cultural que dialoga com a criação arquitetônica em todos os seus aspectos e atividades.

Darcy Ribeiro criou o Museu do Índio em 1953, a obra que ele mais amava, e criou o projeto Parque Indígena do Xingu. Fundador da Universidade de Brasília (UnB), foi seu primeiro reitor. Ministro da Educação no Governo de Jânio Quadros (1961) e chefe da Casa Civil do Governo de João Goulart, foi demitido e perseguido pela ditadura militar, exilou-se e viveu em vários países da América Latina. Durante esse longo período foi professor de antropologia na a mulher pobre e negra trans, são exemplos gritantes de opressão que também se expressam na cultura e nas diversas expressões artísticas que a Revista mostra como conteúdo fundamental.

Darcy Ribeiro.

Qual é o espírito do Memorial que você resgata na Revista Nuestra/Nossa América? Será o da utopia selvagem de Darcy e os dos caminhos para a integração latino-americana?

E.Rascov: Sim, claro. Darcy Ribeiro pretendia apresentar ao Brasil a grande riqueza das culturas das sociedades hispano-americanas, e mostrar às nações vizinhas e irmãs o nosso país, também repleto de história, tradições e paisagens geográficas, humanas, e de fauna e flora.

A Revista Nuestra/Nossa América, distribuída como publicação bilíngue para consulados, embaixadas, universidades, escritores e artistas de todo o continente, sofreu a crise de 2015-16, época do golpe institucional contra a presidente eleita Dilma Rousseff, o que também atingiu a economia em 20%. Mesmo assim, sofrendo o impacto, a Revista Nuestra/Nossa América não deixou de ser publicada, retornando não apenas em seu conteúdo às origens de seu inspirador, Darcy Ribeiro, mas também ao formato original, maior e com mais páginas.

O que o levou a fazer essas mudanças na Revista Nuestra/Nossa América? Como você adaptou os antigos princípios e ideais de Darcy Ribeiro aos novos tempos do século XXI?

E.Rascov: Ao fazer minha dissertação no PROLAM vi que a metodologia de pesquisa poderia tomar dois rumos: os estudos comparados, ou as pesquisas gerais sobre problemas e temas em toda a América Latina. Por que não incorporar essas metodologias na Revista? E porque não trazer também para a Revista novos temas, aqueles que começaram a surgir com força há apenas quinze, vinte anos, trazendo novas diretrizes: como o cuidado da natureza, ou a visão de uma sociedade multiespécie, como que nos destaca desde a tragédia do Rio Grande do Sul, em que somos questionados se devemos salvar os animais antes, depois ou junto com os humanos.

Os temas que suscitam novas visões identitárias também estão incorporados às diretrizes da Revista Nuestra/Nossa América?

E.Rascov: É claro, sem dúvida. É tolice pensar que estas são questões que dividem ou separam as lutas dos oprimidos. Pelo contrário: a mulher negra e favelada.

Como se expressam essas novas tendências culturais, artísticas e folclóricas que trazem à luz os comportamentos das sociedades latino-americanas no século XXI?

E.Rascov: Pois bem, voltamos a Darcy Ribeiro, que conhece no exílio o mexicano Leopoldo Zea, com quem nosso sociólogo brasileiro ajudou a tecer redes transnacionais no mundo intelectual e político, como testemunha sua influência internacional do pensamento indígena e de temas como sub-desenvolvimento e andependência latino-americanos. Também abordam ações como homens públicos que são, especialmente na educação e na reforma universitária, o que é fundamental para compreender sua influência na América Latina, atuando diretamente na reestruturação do ensino superior em diversos países, como Brasil, Uruguai e Venezuela. Tudo isso é base sólida para um pensamento aberto e progressista, alheio ao conservadorismo contra o qual Darcy lutou toda a sua vida e que tão bem se expressa no Memorial da América Latina e na Revista Nuestra/Nossa América.

Darcy Ribeiro.

Qual foi a última publicação da Revista, aquela que causou tanto impacto?

E.Rascov: O último número aborda a devolução do Manto Tupinambá, recuperado pelos nossos povos originários mais de três séculos depois de permanecer no Nationalmuseet, de Copenhague, Dinamarca. Mas o faz não só com grande antecipação à recente chegada da peça ao país, mas a partir de uma perspectiva diferente da mera notícia. Decidimos, com muito sucesso, que a Revista Nuestra/Nossa América trouxesse a cultura ancestral e popular da América Latina através da matéria “Mantos imantados”, de Paulo Vieira, que mostra a aproximação entre o Manto Tupinambá agoraretornado, o Manto da Apresentação, do artista popular Arthur Bispo do Rosário –“negro, pobre, preso por décadas num manicômio, que foi iluminado por sua fé e imaginação e por suas mãos hábeis a serviço de sua criatividade”, como diz a matéria; e os Parangolés, de Hélio Oiticica, que produziu essas capas para que seus modelos –muitos deles da comunidade do Morro da Mangueira, no Rio de Janeiro– pudessem dançar e se divertir. Talvez seu Manto Parangolé carregasse uma força espiritual para que quem o usasse começasse a dançar.

Uma última pergunta para encerrar a entrevista: em 1989 e durante um par de décadas, o ambiente internacional parecia mais propício para os objetivos do Memorial da América Latina e a Revista Nossa/ Nuestra América. Ante a nova situação de maiores dificuldades, sobretudo no território da América Latina e do Caribe, como você acha que ambas as instituições devem agir para continuar aportando aos objetivos da integração econômica, social e cultural do nosso continente?

E.Rascov: De fato, no final dos anos 1980 e nos anos 1990 até meados das duas primeiras décadas dos anos 2000, o ambiente internacional favorecia a ideia de integração. A União Europeia era o grande exemplo. Ela conseguia a integração econômica, cultural e até política. Uma proeza para um continente que vivia em guerra. Com o fim do comunismo na Europa, novos países foram incorporados ao mercado capitalista e o mundo viveu uma fase de expansão econômica, integração produtiva e predomínio dos valores associados à democracia burguesa ocidental. Esse processo ficou conhecido como Globalização

 Mas essa realidade mudou com a ascensão da China, grande potência econômica e o surgimento de novos polos e potências regionais, como a Rússia, a Índia, a África do Sul, a Indonésia, o Vietnã, etc. O início da Guerra da Ucrânia, em 2022, pode ser apontado como o marco do início do fim da supremacia ocidental absoluta. Desde então a tendência é a formação de blocos estanques, comandados pelas potências regionais. Esse é um desafio lançado contra a ordem imposta pelos EUA após a segunda guerra mundial.

Acredito que o Brasil possa jogar um papel importante. Como país mais rico e populoso da América Latina, ele é um líder natural da região. Cabe a ele, então, liderar um processo de integração econômica, cultura e política que faça frente às forças que estão sendo liberadas no momento. Nesse caso, o Memorial pode desempenhar um papel importante como catalisador desse processo. E, claro, sua revista, como veículo das novas ideias e iniciativas integradoras.

Revista Nossa América.